Nunca vi meu pai de camisa esporte. E quando ele morreu, minha mãe ficou olhando para mim. Eu tinha só
dezessete anos. Meu pai não falava nunca. E minha mãe me olhando, esperando, querendo que eu
respondesse:
– O que é que ele diria no seu lugar?
Como é que eu ia saber? Ora o meu lugar, qual era? Minha
irmã começando a sair, namorar, e a minha mãe me
perguntando:
– Você acha que deve? E eu com isso! Depois a história da
casa, vende não vende. E a loja, abre não abre.
Minha mãe sempre indecisa:
– O que é que eu faço?
Meu pai tinha sido um homem severo, quieto, de poucos amigos. Ia de ônibus para o trabalho, representações. Ia e vinha. Sem fazer onda, a vida inteira. E de repente morrendo, foi coração, e deixando tudo arrumado. Ninguém tinha percebido. Nem minha mãe:
– Eu não sabia o que era preocupação.
E não era obrigada a saber. Mas se arreliava, suspirando. Eu que sempre odiei suspiro ficava ali, ouvindo, com sono. A troco de quê? Ela suspirava por medo, atrapalhação, falta de jeito. Principalmente com dinheiro. Ou de sozinha, ou desamparo. Porque eu não era apoio nem companhia.
– Será que eu preciso vender a casa?
Isso era comigo separado, minha irmã por longe. Pra que afligir a menina? Eu entendia, mas não respondia logo. Falava depois, aos poucos, e assim mesmo pela metade.
Quase perdi o ano.
– E a loja, não é boa idéia?
Artigos infantis, roupinhas de nenê, tudo para crianças. No estilo de boutique, Rua Augusta 1. Uma das primeiras a aparecer. Era boa idéia, sim, devia ser bom negócio. Mas como garantir, assim de repente? Minha irmã se animava, ela que sempre se imaginou cercada de filhos, e eu calado, nem sim nem não. Afinal de contas, nunca vira a possibilidade de ganhar dinheiro vendendo coisas.
– O seu dever é me orientar.
Eu diante de minha mãe, ela me olhando, insistindo. Aborrecida, mais, irritada esperando por um conselho.
Muito diferente. Que história é essa de dever, eu me perguntava, quase estourando. Sempre evitei dar palpites, fazer boa ação, negócio de escoteiro. Minha irmã fora bandeirante uns oito anos. Ela sim, podia ajudar. Ou não podia? Eu me sentia covarde, inútil, diminuí demais. E talvez por isso não dissesse nada.
– Se seu pai fosse vivo...
Aí as comparações. E no meio delas, a surpresa de ver minha mãe me acusando: você sempre teve um problema com seu pai. Dito assim, na cara. Fiquei parado, calado, pensando naquilo. Seria mesmo verdade? Eu que a vida toda vinha andando meio por fora, meio para dentro, de mãos no bolso e cabeça baixa, podia ter lá problema com o velho? Logo ele, ausente e sem dizer nada, visto de longe.
Que história é essa?
Minha mãe respondendo, e aprofundando, já entrando nessa mania de explicar as pessoas. Ele era um homem de tino, que pensava em tudo, fazia e acontecia, prestava atenção nela, nos filhos. Eu reparava, eu compreendia? Não, ficava distante, metido comigo mesmo, nesse isolamento que era doentio, nesse egoísmo. Era o meu jeito, não era? Não era não, isso de jeito não justifica nada, era o problema, o meu, estava muito claro. Eu nunca entendera meu pai. Choque de gerações ia sendo aquilo. Mas o espanto foi
maior, e a raiva baixou, e ficou mais uma dúvida quase triste, que me deixava remoendo as lembranças, achando às vezes que bem podia ser, outras que era tudo maluquice. Felizmente, para me ajudar, as perguntas de minha mãe acabaram. Vendeu-se a casa, por bom preço. Deixamos Vila Mariana e viemos para o Jardim Paulista, o apartamento em três anos para pagar. Com o dinheiro que sobrou comprou-se
a loja, como já disse na Augusta. A renda que meu pai deixara ficou maior. Enquanto isso eu terminei o estudo e passei a trabalhar. De corretor, que estava dando muito, com um amigo que já vendera
loteamentos, vilas, palacetes. Nessa vida sem horário, passava dias sem ver minha mãe ou minha irmã, sempre se revezando na loja. E quando as via, falávamos pouco. Do tempo de antes, ficara apenas um copo de leite, último cuidado maternal. Eu precisava me alimentar direito. A loja firmou-se, cresceu, minha mãe alegrou-se de novo. Meus negócios também aumentaram. Descobri que podia falar, e falar fácil, quando o assunto não era meu, pessoal, ou apenas envolvia dinheiro. Aos poucos, fui desempenando. E vez por outra, os três juntos em casa, conversávamos como nunca. Dinheiro ajuda muito, chega a melhorar as pessoas, e isso acontece até com os parentes. As perguntas de minha mãe voltaram. Mas ela decidia antes, e perguntava só de comparação, vamos ver o que você acha. Como faz hoje. Um dia, a propósito de uma partida qualquer que se atrasara, ela quis saber:
– Devo aceitar?
Eu que não entendo de roupas, fiquei um instante pensando, seria vantagem ou não. E ela rindo:
– Já aceitei. Se fosse esperar sua opinião, fechava a loja.
Você é igualzinho a seu pai.
(RAMOS, Ricardo. Herança. In: _____ . Contos brasileiros
3. Para gostar de ler. 18 ed. São Paulo: Ática, v. 10. 2002, p.
80-83).
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